ARTE ARDE

“Vida ardente, arte pegando fogo, literalmente falando. Após botar fogo no papel onde estava marcado a palavra Arte, providencialmente consegui apagar o incêndio, todavia eu queria mesmo que tudo fosse como o fogo que consome meu ser, como a centelha que alimenta a inquietação criativa pelo desejo eterno de fazer arte com forte envolvimento à vida plena cotidiana. Imaginei que todos pudessem sentir o quanto eu estou vivo e apaixonado pela vida, por meu trabalho e por tudo que me cerca…” SM

Segundo Almandrade,

Para Hélio Oiticica a arte era uma opção de vida contra toda e qualquer forma de opressão: social, intelectual, estética, política…Inventor, teórico, refletiu e interrogou a brasilidade e a universalidade da arte, sempre inconformista e indiferente à moda. – Arte concreta, Neoconcretismo, Parangolé, Tropicália, vanguarda brasileira dos agitados anos 60, White Chapel Galery (Londres), seis ou sete anos de Nova Iorque; uma vida de tensão em fazer arte e habitar o mundo.

Ao romper com o objeto/arte como coisa destinada à visualidade (relação “contemplativa”), busca o tato e o movimento, repõe a sensibilidade recalcada pelo tecnicismo do movimento concreto.

Cor, estruturas, palavras, fotos, dança, corpo, definem a obra. A participação física é o centro e o interlocutor do acontecimento/arte, o conceito de visão envolve todo corpo, difícil não pensar na fenomenologia de Merleau-Ponty.

Nas palavras do próprio Oiticica,

Tropicália é a primeiríssima tentativa consciente, objetiva, de impor uma imagem obviamente brasileira” ao contexto atual da vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional. Tudo começou com a formulação do Parangolé, em 1964, com toda a minha experiência com o samba, com a descoberta dos morros, da arquitetura orgânica das favelas cariocas (e conseqüentemente outras, como as palafitas do Amazonas) e principalmente das construções espontâneas, anônimas nos grandes centros urbanos – a arte das ruas, das coisas inacabadas, dos terrenos baldios, etc.

E prossegue Almandrade:

A experiência de Hélio Oiticica parte do concreto para a periferia do projeto construtivista, adotando procedimentos estranhos como: a marginalidade, a crítica à produção industrial, a participação do corpo na leitura da obra. No princípio era Mondrian e Malevitch; depois, o outro lado da modernidade: Marcel Duchamp. Uma trajetória exemplar, na forma como transformou o seu trabalho, fazendo da existência a condição da arte. A vida de um artista não explica a obra; mas, se comunicam, principalmente no caso de Oiticica. Seu trabalho é resultado de sua relação tensa com o cotidiano, que via na marginalidade uma idéia de liberdade; aliás, o artista não é um marginal que empresta seu corpo ao mundo, para transformá-lo em pintura?! (Merleau-Ponty). Com a Tropicália, Oiticica submeteu a brasilidade a uma inteligência rigorosa, sem perder o referencial poético. Uma proposta cultural que buscava algo à margem, ou melhor, entre “o visível e o invisível”; construir, com a experiência sensorial, um pensamento.

Joseph Beuys, considerado o mais importante artista alemão do período moderno, afirmava que a arte jamais deveria separar-se da vida e que todo ser humano é, em potencial, um artista criador.

Segundo Beuys, o “artista” fazedor apaga-se para enaltecer o artista decifrador, que ocupa agora o lugar na divina criação daquilo que foi apenas a modesta aparência ou sombra da realidade que é a vida quotidiana. Trata-se da inversão do mito da caverna de Platão. Antigamente o artista era o personagem que, através do “ícone sublime”, fazia aparecer a divindade no público considerado como incapaz de participar da beleza dos deuses, própria aos divinos artistas. Agora, trata-se de uma demissão do papel divino do fazedor de arte, para que caiba aos outros o papel de criadores autônomos. Mas não se pretende apenas essa reviravolta do sujeito objecto. Trata-se agora da possibilidade de toda a gente poder participar neste duplo jogo de produzir e usufruir da arte, transpondo este passo que separa o artista do não artista. Dantes, a arte fazia consumir um imaginário totalmente elaborado pelo artista, obrigando o fruidor a delimitar-se a uma proposta definida.

A artisticidade de Beuys é o quotidiano, acessível a toda a gente, processo contínuo, obra aberta para todos os imaginários que na participação, no debate e na acção solidária vão criando mudança de vida. Percebendo a fundamentação do seu pensamento e reconhecendo a autenticidade da sua vida, podemos compreender melhor o alcance da sua obra. A guerra representou, certamente, na sua vida um elemento central. Beuys, ele próprio, “designou o tempo de guerra uma experiência cultural e como artista pôde incorporá-la na sua obra” (in Joseph Beuys -Heiner Stachelhaus -ParsifalEdiciones, Barcelona 1990).

Primeiramente, a situação de suportar uma guerra como um destino na frente militar. Soldado raso, não queria submeter-se às regras de obediência, porém, obrigado pela “máquina de guerra”, enfrentou a experiência da morte. No Inverno de 1943, como telegrafista num bombardeiro de combate, teve um acidente. O avião depois de atingido pelos canhões antiaéreos de uma base russa, despenha-se na Crimeia, durante uma tempestade de neve. Beuys é o único sobrevivente. Está gravemente ferido. Uma fractura craniana, costelas, pernas e braços partidos.

Quando está à beira de morrer, um grupo de tártaros nómadas, que transitavam por esse lugar, acolhem-no. Cobrem-no primeiro de gordura e aconchegam-no depois com panos de flanela. E, num ambiente mágico, os “chamanes” da pequena tribo de nómadas curam-no milagrosamente. Beuys vivencia essa presença “chamánica” como algo de exemplar e significativo para a sua vida e obra. Daí a importância constante da gordura e do feltro, materiais com os quais os “chamanes” o envolveram para o curarem das queimaduras e traumatismos sofridos com o acidente. Daí a constante atitude de profundo respeito pela natureza e pela espiritualidade cósmica.

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